O canário de mina e o “novo paradigma”

Saudações.

Lá em meados de 1910, quando a exploração de carvão em minas subterrâneas era intensa no Reino Unido, operários passaram a levar consigo para o interior das galerias um canário preso em uma gaiola.

Não se tratava de superstição ou coisa do gênero: era uma prescrição do fisiologista inglês John Haldane. O racional era simples: o acúmulo de monóxido de carbono no interior das minas era um risco relevante à vida dos operários.

O sistema respiratório do canário era muito mais sensível do que os dos operários. Mediante níveis relativamente baixos de monóxido de carbono, o canário da mina morria – e sua morte servia de indicativo de que os trabalhadores deveriam agir rápido para preservar a própria vida.

 

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Seja revisitando a história, seja testemunhando-a em primeira pessoa ao longo das últimas duas décadas, alguns padrões parecem emergir de tempos em tempos. E um dos quais me chama particular atenção é a ideia do “novo paradigma”.

Ele ocorre tipicamente após um período de bom desempenho do mercado. Mais especificamente, após um período relativamente prolongado ao longo do qual preços se mantêm persistentemente em patamares “difíceis de explicar” a partir da ótica das abordagens de análise comumente aceitas.

Em outras palavras, o fenômeno do “novo paradigma” costuma surgir em momentos de otimismo de mercado.

A bolha das “pontocom” foi um excelente exemplo. Em meio a valuations irrazoáveis por qualquer métrica, surgiu e disseminou-se com bastante força a ideia de que as abordagens tradicionais estavam ultrapassadas; não serviam mais como parâmetro de valor.

No período que sucedeu à crise do subprime, no qual juros foram a patamares extraordinariamente baixos mundo afora, o mesmo fenômeno se repetiu. Ali teve início, em especial, o ciclo das startups que tinham em gerar resultado a última das suas prioridades, pois era extraordinariamente fácil conseguir um novo cheque quando o caixa se aproximava do final.

Mesmo após a emergência sanitária de 2020-2021, vivemos um micro-ciclo de “novo paradigma” em setores específicos – como, por exemplo, o varejo -, alimentado pela ideia de que tais negócios deveriam ser avaliados primariamente por métricas de crescimento de receita, mesmo que essa receita viesse às custas de pesada queima de caixa. Aí estão Americanas, Casas Bahia, Magazine Luiza, Mobly, Westwing,  e tantas outras.

 

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Diante disso tudo, passei a acreditar piamente que a emergência de discursos de “novos normais” é um poderoso indicador de que algo não vai bem nos mercados. Este é o meu canário de mina particular.

Recentemente, David Einhorn, fundador da Greenlight Capital e um dos mais respeitados gestores de recursos dos Estados Unidos, participou de um podcast produzido pela Bloomberg. Em meio às suas colocações, destacou ter formado convicção de que a ascensão dos ETFs passivos e dos fundos quantitativos havia mudado estruturalmente o funcionamento dos mercados.

Nas palavras de Einhorn, valor não é mais algo levado em conta para a maior parte do dinheiro investido. A alusão é aos fundos quantitativos cujas estratégias, agnósticas a qualquer noção de valor, realizam estratégias de investimento tão somente guiados por ferramentas que tentam prever os movimentos futuros de preços – façam esses preços sentido ou não.

Os ETFs de gestão passiva, por sua vez, estariam contribuindo para um ciclo vicioso: dinheiro sai de fundos ativos, fazendo com que seus gestores precisem se desfazer de posições baratas, e migra para fundos passivos, que investem sem considerações quanto a valor e, por conta de fluxo, tornam ainda mais caras teses já sobrevalorizadas. Nessa dinâmica, enquanto houver fluxo, a tendência passa a ser que o caro fique ainda mais caro e o barato, ainda mais barato.

 

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A descrição que Einhorn faz da atual situação de mercado me parece bastante fidedigna. Minhas dúvidas dizem respeito à sustentabilidade dessa tendência.

Na esmagadora maioria das vezes em que preços descolaram de fundamentos, eventualmente houve uma correção. Não necessariamente em curto espaço de tempo (ou seja, preços podem permanecer “irracionais” por mais tempo do que gostaríamos), mas sempre ocorreu.

Entre acreditar que vivemos um “novo normal” onde preços têm vida própria ou pressupor que, tal qual todas as outras vezes, desta vez também não é diferente e, eventualmente, veremos uma normalização… eu, sinceramente, fico com a segunda hipótese, mais conservadora.

Mas, sobretudo, o fato de estar sendo aventada a hipótese de divórcio entre preço e valor, com a inauguração de um “novo paradigma”, só me faz pensar nos canários de mina.

 

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Os fundos quant e a indústria de fundos passivos são gigantes nos Estados Unidos. Nem tanto por aqui – de forma que, a princípio, me parece que essas distorções se manifestam em intensidade muito maior lá do que aqui.

Mas, como frequentemente digo, é o cachorro quem abana o rabo e não o contrário: é muito difícil, para não dizer impossível, imaginar um cenário em que o mercado brasileiro vai bem em meio a problemas nos EUA.

Se o diagnóstico de Einhorn se mostrar correto; se o mercado americano estiver se tornando disfuncional; e se minha crença de que isto não é indefinidamente sustentável se mostrar verdadeira… convém ficarmos atentos às dinâmicas por lá em função das repercussões por aqui.

Sigo atento a essas questões em todos os meus mandatos.

 

Um abraço,

Ricardo Schweitzer

Ricardo Schweitzer

Analista CNPI, consultor CVM
e investidor profissional.

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🎖 Pai; Investidor Profissional; Analista e Consultor
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