Saudações.
Começo minha mensagem de hoje a você duas manchetes, separadas por cerca de um mês de distância:
Muito poderia ser dito a respeito da reviravolta de 44 bilhões num intervalo tão curto de tempo – e mais ainda poderia ser dito sobre o fato de a maioria achar normal que, da noite para o dia, uma empresa “deixe de precisar” reter uma cifra dessa magnitude no seu caixa.
Mas, na verdade, eu quero aproveitar o gancho para falar de um aspecto extremamente mal compreendido dos dividendos – e, ainda mais, evidenciar outro atributo deles que passa desapercebido para a maioria do público investidor.
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É bastante possível que você já tenha ouvido por aí os argumentos de que dividendos são irrelevantes, dividendos saem do preço da ação, então não representam aumento de valor para o acionista e outras coisas do gênero.
O cerne dessas afirmações é um artigo dos anos 60, cujos autores se chamam Franco Modigliani e Merton Miller. Ambos receberiam, alguns anos depois, o “Nobel de Economia” por suas contribuições para a teoria de finanças – o que, evidentemente, aumentou ainda mais a força de seus argumentos.
De maneira bastante resumida, Modigliani e Miller (a quem vou, de agora em diante, me referir simplesmente como “MM”) postularam que a distribuição de dividendos é irrelevante para a geração de valor para o acionista em um contexto hipotético onde determinadas condições se fizessem presentes.
As condições? 1. Não existem impostos, nem às Pessoas Físicas, nem às Pessoas Jurídicas; 2. Não existem custos de transação; 3. O custo de capital de uma empresa não é afetado pelo seu nível de alavancagem financeira; 4. Todos os investidores têm todas as mesmas informações a respeito das perspectivas futuras do negócio da empresa que seus executivos dirigentes – e as interpretam da mesma forma, acrescento eu.
Qualquer semelhança com aquelas questões de física que respondíamos no colégio, onde uma partícula sem massa viaja à velocidade da luz em um tubo de vácuo não é mera coincidência: um exercício teórico tem a finalidade de entender relações entre variáveis em um plano abstrato e simplificado, que eventualmente deixa de fora aspectos importantes da realidade.
A questão é que, ao contrário da conduta adotada por um engenheiro que não deixa de ignorar existência da força da gravidade quando faz cálculos estruturais, muitos praticantes de finanças se sentem plenamente à vontade de assumir que o mundo real funciona tal qual o mundo de MM.
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E um exemplo da distância entre a teoria de MM e a realidade é que, quando do anúncio do corte de dividendos, as ações da Petrobras caíram pesadamente. E, agora, em meio a rumores de que os dividendos serão restabelecidos, há quem volte a nutrir algum otimismo em relação à empresa.
Por óbvio, esse comportamento contradiz a teoria: para serem fiéis ao que foi postulado por MM, investidores deveriam ter dado de ombros quando o dividendo foi cortado e, agora, deveriam bocejar.
O exemplo é altamente ilustrativo de elementos que ainda não faziam parte da teoria lá nos anos 60, mas que foram posteriormente compreendidos e incorporados.
Primeiro, vamos ao óbvio: no mundo real existem impostos; no mundo real existem custos de transação; no mundo real o custo de capital de uma empresa é afetado pela percepção dos potenciais credores e acionistas a respeito da capacidade da empresa em gerar valor.
E, principalmente, no mundo real a informação não é totalmente livre, nem homogênea, nem é identicamente interpretada por todos os participantes do mercado – que, definitivamente, não contam com o mesmo nível de informação a respeito da empresa do que seus diretores.
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Se fossem verdadeiras as premissas mencionadas, teríamos, em resumo, que o preço de uma ação sempre representaria o valor perfeitamente estimado dos fluxos de caixa futuros que aquele negócio gerará. O que a empresa paga em dividendos, portanto, reduz os investimentos futuros – e deveria, portanto, gerar um impacto de proporção maior do que o dividendo pago na estimativa de valor da empresa. Reciprocamente, tudo mantido no caixa da empresa virará investimento e gerará valor, e desde já estará corretamente incorporado ao preço da ação.
Acho que não preciso nem dizer que o mundo não funciona assim, não é mesmo?
Primeiro, porque tipicamente o impacto no preço de uma ação após o pagamento de dividendos equivale rigorosamente ao valor pago – o que ocorre porque, caso contrário, existiria uma oportunidade de “fazer dinheiro a partir do nada” comprando uma ação antes do pagamento do provento e vendendo-a logo depois, situação à qual se dá o nome de arbitragem. E o mercado pode não ser eficiente, mas também não é tolo.
Segundo, porque não necessariamente uma empresa sempre tem oportunidades de investimento prontas para serem exploradas imediatamente com os recursos em excesso que carrega em seu balanço. Basta olhar em volta para constatar que há um sem-número de empresas com caixa “empatado” há trimestres ou anos, investidos a CDI – o que, considerando que o custo de capital é maior do que o retorno da renda fixa, destrói valor para o acionista.
Terceiro, porque a informação de mercado não é homogênea. Há participantes que têm mais informações do que outros, principalmente porque podem pagar por fontes que não estão prontamente disponíveis aos demais. E, mesmo que toda a informação fosse disponibilizada, existe um componente humano importante na história: cada um de nós interpreta informações com seus próprios vieses e percepções.
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Mas a coisa não para por aí. Lembra da parte dos executivos?
Em primeiro lugar, é bastante óbvio que eles contam com mais informações a respeito da empresa do que o público em geral, seja pura e simplesmente porque sempre existem aspectos sigilosos, seja porque sua proximidade com a operação lhes permite uma capacidade de interpretação do que está disponível diferente da minha ou da sua.
Mas a isso se soma outro aspecto: o público investidor, que observa as empresas do lado de fora, não tem todas as informações para avaliar a conduta dos executivos em cada ato em favor da empresa. E se, no mundo da teoria, os diretores sempre agem no melhor interesse do negócio, no mundo real sempre existe a possibilidade de seus interesses particulares entrarem em cena e afetarem a condução das coisas. Na teoria econômica isso recebe o nome de problema agente-principal.
E é quando a gente passa a enxergar o mercado como um ambiente no qual as pessoas não sabem todas as mesmas coisas, nem interpretam da mesma maneira as coisas que sabem, bem como é quando passamos a cogitar que nem sempre a gestão da empresa se dá o tempo todo em favor dos melhores interesses da empresa (e de seus acionistas) que, juntamente com outras ferramentas, uma política de dividendos pode fazer sentido.
Mas esse assunto continuamos na semana que vem.
Um abraço,
Ricardo Schweitzer